Sunday, June 25, 2006

As carpideiras picaretas
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Brilhante e irrespondível artigo de Antonio Machado no Correio Braziliense (www.correioweb.com.br), verdadeira autópsia em defunto putrefato, mostrando toda a sordidez e picaretagem que cerca o fim da velha marafona dos ares. Merece a transcrição.
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Enigmas aéreos
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Sobre a Varig tudo é nebuloso. E quem dela se aproxima parece possuído pelo impulso de transgredir
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Por Antônio Machado - cidadebiz@correioweb.com.br
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Entre as manobras heterodoxas para manter a moribunda Varig no ar e o seu enorme passivo, acima de R$ 7 bilhões — mas, se fizerem as contas bem feitas, pode chegar a R$ 10 bilhões —, há mais coisas estranhas do que sugere a boa vontade do governo em acudir tantos lesados por uma situação insustentável há uma década. Sobre a sua longa agonia muito se escreveu. Mas quanto mais se lê sobre o fim de uma empresa, que em seu auge, nos anos 70 e 80, era eleita como das mais eficientes no mundo, menos se entende. Se estava insolvente desde a metade da década passada, como pôde continuar se financiando junto a seus próprios credores? Olhe que nenhum deles é café pequeno. Tem da Petrobrás à Boeing, que aluga parte dos jatos de uma frota totalmente arrendada. Tem a Infraero, locadora de todas as instalações da Varig nos aeroportos. E também a Receita Federal, o INSS, a CEF, funcionários dispensados, pois há anos ela deixou de recolher os impostos, contribuições sociais, taxas, FGTS, direitos trabalhistas. Não podia estar mais suja.
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Estava em coma, vivendo de aparelhos, e do coma nunca saiu. Como, então, além de manter o crédito na praça, afundando cada vez mais quanto mais se endividava, pôde habilitar-se a ter débitos fiscais refinanciados em 180 meses pelo regime do PAES? Endividar-se junto ao fundo de pensão Aerus, dos funcionários? “Conseguimos provar com documentos detalhados que a atuação da União foi criminosa na fiscalização desse fundo de pensão”, disse o advogado Luís Antônio Castagna Maia, em reunião com os sindicatos que o contrataram para acompanhar sua liquidação. “A mantenedora usava recursos do Aerus para se financiar, o que é absolutamente criminoso e ilegal.”
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A Varig fez tudo isso formalmente, segundo um de seus muitos ex-presidentes da fase terminal, que entrou, viu a feiúra do quadro e se mandou. Mas, informalmente, permitiram aos cardeais da Fundação Ruben Berta, dona da Varig, até dar nó em pingo d’água, como as liminares expedidas pela Justiça contra a Infraero, numa outra espécie de financiamento — no caso, para não recolher tarifas de embarque retidas na venda de passagem e de pouso e decolagem.
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Doente escondido
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Um espanto! Em nenhum momento, dos governos FHC a Lula, se cogitou seriamente em dar um basta, pelo menos enquanto ela tinha valor de marca e patrimônio, bichado, mas com certo charme. Seu patrimônio era negativo e só aumentou. Havia e há, agravada, uma persistente insuficiência de geração de caixa — sinal de que os custos, o que inclui uma folha que a faz se assemelhar a uma estatal, não a uma empresa privada, passaram-se os anos e ainda excede as receitas. Nem assim ocorreu aos doutores da República interromper a sangria dos dinheiros públicos. Assim como as famílias antigas escondiam o parente desenganado, ninguém falava da crise da Varig, no governo, até que se tornou impossível esconder as suas chagas.
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Leilão de vento
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E a Justiça? Merece um capítulo especial o dia em que for escrita a crônica da decadência da Varig. Seu acionista controlador é uma fundação sujeita, pela lei, à fiscalização do Ministério Público. Não deve nunca ter sido fiscalizada ou, se foi, o fiscal devia ser míope. Já com o pé na cova, teve a sua concessão renovada no final de 2004 pelo governo, embora houvesse documentação suficiente para cassar a permissão para voar. Mas... Alto lá! Se é concessão, o que o juiz Luiz Roberto Ayoub, da 8ª Vara Empresarial do Rio, o protagonista aparentemente final desta tragicomédia, pôs em leilão dias atrás? Se os aviões estão alugados e as rotas, os hangares e os balcões nos aeroportos são do Estado, o que há para vender? Não teria sido sensato o governo retomar o que é seu, para estancar o sangradouro, e, com um leilão, tentar recuperar parte do prejuízo?
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Bom senso nenhum
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Mistérios. Sobre a Varig tudo é nebuloso. Quem dela se aproxima, sabe-se lá porque, parece possuído por um impulso de transgredir leis e o bom senso. Pegue-se o juiz Ayoub. Lá pelas tantas mandou a BR Distribuidora fornecer combustível à Varig, mesmo ela estando inadimplente. Desde quando um juiz pode obrigar uma empresa, mesmo que estatal, a aviltar o seu interesse? Não atentou que o seu ato aumentou a insegurança jurídica que já permeia os investimentos no país? Perguntas. É o que mais se faz. Se apenas uma tivesse tido a resposta no tempo certo, a Varig seria hoje uma beleza.
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Do jeito como caminha o seu final, a Varig sairá de cena como um ente material e ressuscitará, em seguida, como um fantasma que por muito tempo atazanará a vida dos que permitiram tantos desatinos. São tão bisonhos os erros e omissões, que não deverá ser difícil aos funcionários, por exemplo, processar a União e ganhar. Já os credores vão chorar ao bispo. Crescidos, sabiam o que faziam ao financiar uma frota de vento, mesmo as estatais, cujas diretorias têm de aprender a dizer não ao Executivo. Não procurem santos, que eles não existem nesta história.
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Todos têm parte na falência múltipla de uma empresa que chegou a ser uma jóia valiosa. Ninguém — os acionistas, funcionários, o seu fundo de pensão, o governo, os credores — toparam, em algum tempo, sacrificar parte de seus interesses para tentar se construir uma solução. Não faz meses e o sindicato cobrava reajuste salarial...
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