Monday, May 08, 2006

Itamar, essa grande mala
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Após constatar o fel, o amargor, o rancor e os recalques que atormentam o pobre Itamar Franco, candidato de sí mesmo à presidência da República, em melancólica apresentação no programa Roda Viva, da TV Cultura, o homenageio com a republicação de artigo que escrevi em março de 2004.
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Como continua atual...
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ITAMAR FRANCO, ESSA MALA


“Se Itamar Franco fosse um objeto,
seria melhor perdê-lo do que achá-lo”
Sérgio Barleben



Itamar Franco é um eterno incompreendido.

Chego a pensar que toda a humanidade está errada, mas ele, tal qual uma personagem fronteiriça de Lima Barreto, é quem está certo.

Desafiando a lógica, desprezando antigos e consagrados conceitos, seguindo um, digamos, raciocínio particularíssimo, tal qual um Forest Gump jeca, chegou à presidência da sereníssima República e governou Minas Gerais. “Governou” é força de expressão, é licença poética, pois ele não governa nada, coisa alguma, sendo um diletante em tempo integral, atazanando a vida dos que querem fazer e construir.

Itamar é um dos melhores exemplos de como o Brasil tem insopitável vocação para glorificar a mediocridade, premiar a inoperância, louvar a incompetência. Com seu topete fora de moda, seus terninhos comprados na lojinha “Miami”, em sua cidadezinha, seu gosto duvidoso em se referir aos conterrâneos como “montanheses”, as costeletas ridículas que adotou recentemente...

Anuncia-se, agora mesmo, que está voltando de sua vilegiatura em Roma. Vai procurar o presidente da República, o tabaréu-chefe, e reclamar sua remoção para outras plagas. Não tem vida social em Roma, não aprecia o Doria Pamphilli, nem conseguiu dominar o idioma de Dante. Nesse ponto, e só nesse, ele está desculpado: como falaria um belo e razoavelmente complexo idioma se mal fala o português?

O embaixador em Roma é uma personagem que, mirada pela grande angular da moderna psicanálise, pode ser esmiuçada, patologicamente esquadrinhada, enfim, deixar as coxias e os camarins e, como uma tardia Elvira Pagã de Juiz de Fora, deleitar-nos com um strep-tease onde transpareça, além da ranhetice e da sabida improdutividade, sua verdadeira persona.

Itamar, na acurada análise de um psiquiatra amigo meu, tem permanente necessidade de afirmar-se como mineiro, recorrendo aos símbolos do Estado, para compensar o fato de ter nascido em um navio, em pleno litoral baiano, quem sabe em meio a uma daquelas tempestades tropicais que sacolejavam os vapores da Costeira e levavam o pavor aos humildes passageiros que haviam tomado um Ita no norte pra ir no Rio morar.

Mineiro ele não é. Nem nunca será. Se os próprios mineiros se encarregaram de criar e propagar uma idéia que se tornou verdade absoluta, a da sapiência intelectual e da matreirice política de que são dotados, como acreditar que um político que roça a mediocridade, homem provinciano (pior, municipal...) e administrador sofrível, possa transformar-se de um dia para outro em ícone do estado que é berço de Antônio Carlos (não o malvado babalorixá ACM, mas a “Raposa das Alterosas”), Milton Campos, JK, Bias Fortes, Gustavo Capanema, Tancredo Neves, Cristiano Machado, Santiago Dantas, Magalhães Pinto ?

Essa exacerbada mineiridade é uma forma de encontrar um ponto cardeal, que lhe faltará sempre, tanto na questão telúrica quanto na emocional. E aí, justamente aí, reside o drama de Itamar Franco.

A questão comportamental é a faceta mais violenta da personalidade do ex-governador das Minas Gerais. Ele é capaz de tudo – embora não seja um homem desonesto, pelo contrário. Mas ele se presta a papéis que vão das raias da demência ao mais completo ridículo.

Lembro-me bem que na campanha de 82, percorrendo o sul de Minas com o Dr. Tancredo Neves, num dia particularmente exaustivo, chegamos em um aviãozinho em Poços de Caldas e descemos a Mantiqueira visitando uma dezena de pequenas cidades até terminar a noite em Santa Rita do Sapucaí. Na casa senhorial dos Moreira, herdada pelo udenista Bilac Pinto, fomos recebidos por um simpático casal, Beatriz e Coriolano Beraldo. Uma mesa farta, daquelas que a hospitalidade dos mineiros costuma oferecer aos que visitam suas casas, nos esperava, e também a notícia de que o Senador Itamar Franco, em campanha na Zona da Mata, havia reclamado do voto vinculado e feito referências pouco elogiosas ao candidato de seu partido ao governo estadual. Tancredo, um dos políticos mais elegantes, respeitosos e convenientes que conheci em minha vida, um autêntico cavalheiro, segurou no ar a xícara de café e, com expressão grave, disparou o único impropério que escutei em quase um ano de estreita convivência: “Esse, é um filho da puta”. O silêncio foi total. Depois um comício grandioso, onde Tancredo eletrizou a multidão e pediu votos para Itamar, num exercício de dignidade incomum para o ressentido de Juiz de Fora.

Anos depois, na campanha de 94, em viagem pela região de Governador Valadares, numa das zonas mais carentes de Minas, Lula, em sua segunda tentativa de eleger-se presidente e chocado com o uso da máquina em favor de Fernando Henrique, o candidato oficial, disparou para jornalistas que acompanhavam sua “Caravana da Cidadania”: “O Itamar é um filho da puta”. Itamar, presidente da República, ofereceu resposta bisonha: “Não sou filho da puta, minha mãe se chama Itália Franco”.

Na campanha presidencial de 89, quando nosso herói, surpreendentemente, tornou-se o vice na chapa de Fernando Collor de Mello, ele foi a mais carimbada das figurinhas dos bastidores do pleito. Se para o grande público o histriônico Enéas Carneiro e o seu fascistóide Prona, eram motivo da mais absoluta chacota, para a imprensa e o meio político os potins mais deliciosos vinham das porraloquices do nosso agora embaixador Itamar.

Por mais de uma vez renunciou à candidatura. Depois renunciou à renúncia. Brigou porque o jato que o servia não tinha banheiro, enquanto o de Collor tinha um “excelente mictório” – segundo palavras suas – e ficou mais tempo recluso em seu apartamento de Juiz de Fora do que trepado nos palanques Brasil afora, naquela que foi a mais frenética e exitosa campanha eleitoral assistida pelos brasileiros desde a que elegeu Jânio Quadros, em 1960.

Desleal, conspirou durante todo o tempo contra o seu companheiro de chapa. Transformou sua suíte no Hotel Glória num permanente palco por onde desfilaram políticos decadentes, lobistas e amiguinhos da colônia mineira. A mesma massa ruim que lhe serviu de base para o governo sofrível que viria a fazer.

Presidente, por obra do impeachment, cometeu barbaridades como a da nomeação de uma jovem e bela engenheira, funcionária da ponte Rio-Niterói, para Ministra dos Transportes. Era de tal forma obtusa, medíocre, desimportante, que ninguém se lembra dela nem de seu nome. Ficou poucos dias no governo e demitiu-se de forma abrupta, na crista de um pequeno escândalo. Dona Cosette Alves, a inteligente e simpática ex-dona do Mappin, convidada para o Ministério da Indústria e do Comércio, renunciou no dia da posse, arrasada por um implacável artigo do colunista Giba Um, que desnudava tanto a convidada quanto o presidente que teve a péssima idéia de convocá-la para o seu time. Nepotista, nomeou um irmão, absolutamente despreparado, para superintendente da previdência social no Rio de Janeiro. É inesquecível a cena, mostrada pelos telejornais da época, em que o esquizóide é enxotado pela população de um posto médico, onde, identificado, protagonizou um bate-boca dos mais baixos possíveis.

Confrontado com a oportunidade histórica de reparar a clamorosa injustiça cometida contra o Capitão Sérgio Macaco, o herói do Parasar que se recusou a tornar-se um terrorista matando brasileiros inocentes por ordem do facinoroso brigadeiro João Paulo Penido Burnier, e foi cassado e aposentado na FAB, Itamar falhou. Falhou de forma covarde, mesquinha, pequena. Sérgio já era um vegetal, pesava pouco mais de 40 quilos, numa cama suportava mais o câncer que terminou por matá-lo do que a omissão de um governo fraco que se recusava a promovê-lo ao brigadeirato. Enquanto desfilava pelo sambódromo com a vulgaríssima Lílian Ramos sem a necessária (?) calcinha, Itamar se igualava aos que cassaram, prenderam e injustiçaram um dos mais notáveis exemplos de patriota e de militar digno, nas palavras sábias do saudoso brigadeiro Eduardo Gomes.

Numa camaradagem que ainda hoje custa caro aos cofres públicos, nomeou cupinchas de raro despreparo para cargos da mais alta responsabilidade. Para nossa Embaixada em Lisboa, enviou uma das figuras mais curiosas e improdutivas da vida pública brasileira, o José Aparecido de Oliveira. Não se pode dizer, em tal caso, que Itamar não tenha sido coerente e até sábio: que outro posto senão Lisboa para um político menor, provinciano, futriqueiro, inculto e – principalmente – monoglota?

Logo após, reservou para si o Palácio das Mil Flores, uma agradabilíssima e opulenta construção a poucos minutos do centro de Lisboa. Construiu um galinheiro nos fundos do palacete, talvez o fato mais marcante de sua passagem por aquela representação diplomática. Embaixador mais omisso, impossível. Depois uma esticada até a OEA, em Washington. Apesar de ter levado alguns áulicos consigo, até mesmo o seu mordomo, um rapaz jovem e bem-apessoado, de ter importado a, digamos, namorada (June Drummond, paga pela falida Golden Cross, mas isso é outra história), Itamar pareceu um peixe fora d’água, e curtiu sua ociosidade comendo pão de queijo e falando com a turma de Juiz de Fora em demoradas e dispendiosas ligações telefônicas internacionais. Nem inglês o preguiçoso se deu ao trabalho de aprender.

Elegeu o seu sucessor na presidência, é verdade. Elegeu, mesmo. Gostem ou não os tucanos. Elegeu por ter dado liberdade a Fernando Henrique e sua equipe para que fizessem o plano real, do qual reivindica a paternidade (ou a maternidade, no dizer do irreverente Serjão Motta). E ao levar FHC ao Planalto acreditou que voltaria quatro anos depois, numa troca de favores, numa retribuição entre comadres de Juiz de Fora, num toma-lá-dá-cá que lhe fascina. Não contava com a reeleição, comprada a peso de ouro, num dos capítulos mais sórdidos da história política republicana.

Ficou bravo, esperneou, voltou e tentou ser candidato do PMDB, partido que havia abandonado em 86 pelo PL, numa tentativa frustrada de se tornar governador de Minas Gerais. Do mesmo PMDB que ele havia abandonado em 89 para ser o vice de Collor, no pitoresco PRN. É claro que o partido lhe deu um adeus de mão fechada e ele, raivoso, foi para sua inefável e feia Juiz de Fora e mandou que os amigos votassem em Ciro Gomes. Que perdeu em Juiz de Fora...

Eleito, enfim, governador do Estado, num segundo turno com Eduardo Azeredo, Itamar protagonizou um dos momentos mais deselegantes da história política de Minas: sem compreender a grandeza e a civilidade do gesto do derrotado, que compareceu à sua investidura, pronunciou elegante discurso e desejou-lhe boa sorte, ele sequer olhou para Azeredo, comportou-se como um menino amuado, deixando escapar seu ressentimento, sua índole vingativa, sua ausência absoluta de fraternidade.

Governo desastroso, ineficiente, prosaico. Rasgou contratos, atrasou salários, quebrou o Estado. Sequer teve a coragem de ser candidato à reeleição. Apoiou o jovem Aécio Neves, que demonstrando imenso caráter, tem descascado os inúmeros abacaxis herdados, sem dizer palavra, reconstruindo Minas Gerais, que encontrou devastada pela inépcia de seu antecessor.

Lula, esse desastre administrativo, que um dia lhe chamou de filho da puta, o nomeou embaixador num país importante, estratégico para o Brasil. Difícil saber quem é pior.
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